“…a verdade real é que na arte dramática não há nunca, em tempo algum, isto a que chamamos verdade única. As verdades são muitas. Desafiam-se, esquivam-se, refletem-se, ignoram-se, importunam-se, são invisíveis umas para as outras.”
Harold Pinter, Arte, Verdade e Política.
A “Sonolenta” é um filme sobre o real e como tal será esquivo e múltiplo. É construído apenas a preto e branco para melhor baralhar as diferentes dimensões da realidade narrativa, que no filme se encontram entre a mais profunda sonolência e a máxima vigília. A técnica que dará vida às personagens e aos momentos cinemáticos será a do desenho a tinta da china, tendo como base a animação tradicional.
Uma vez que se optou por não criar uma fronteira gráfica, caberá ao espetador decidir quando está perante uma efabulação onírica ou, por outro lado, se encontra na presença das personagens despertas, numa cena de vida real.
Embora seja visualmente homogéneo, no filme os momentos que descrevem o sonho serão mais flexíveis na forma como (re)constroem a realidade das personagens através da animação. Há momentos em que uma cabeça tomba e se desprende do pescoço; outros em que as personagens parecem ser de borracha e o seu corpo se alonga de forma irreal, outros ainda em que um espaço interior, como um quarto, se confunde com um espaço exterior. Nestes momentos – em que nos encontramos dentro do sonho e/ou somos tomados pelo cansaço da protagonista – a intenção é que se subvertam as convenções.
Enquanto pensava nas possibilidades cinematográficas desta narrativa, nas diferentes formas de a adaptar à imagem em movimento, ocorreram-me algumas obras que constituem, para mim, importantes referências. Os filmes de animação de William Kentridge e de Gianluigi Toccafondo pela forma como, no primeiro caso, as imagens deixam um rasto das ações passadas e, no segundo, a elasticidade e a plasticidade que caracterizam o corpo das personagens, ações e objetos. Os processos de animação utilizados por estes autores – o eco ou rasto visual e a distorção – farão também parte da “Sonolenta” sempre que as ações assim o exigirem.
As ações serão reforçadas pelo recurso a uma sonoplastia realista (vigília), não realista (sonho) e uma banda sonora musical minimal (no sentido em que não estará presente durante todo o filme mas em momentos específicos).
Como o título do filme sugere, a música terá como inspiração canções de embalar ou “lullabys”. Uma vez que não existe a preocupação em associar o filme a uma nacionalidade em particular, até porque não se pretende que ele seja um retrato de uma qualquer época ou nação, esta a canção deverá ter um carácter universal,
A música será composta por um tema principal baseado num melodia de embalar e deverá incorporar, através do recurso aos mesmos instrumentos e frases musicais, os sons musicados que surgem durante o filme. Esta terá como função criar um ambiente emocional e narrativo cada vez mais saturado (em crescendo), traduzindo o sono, cada vez mais pesado, da protagonista. Culmina num silêncio abrupto e posteriormente retoma-se a melodia, embora com uma tonalidade mais calma e relaxante, já depois do momento alto da narrativa ou do seu desfecho.
A música pautará a intensidade das cenas representadas, sendo absolutamente fundamental para a leitura das emoções da protagonista, ora sugerindo tensão e frieza, ora mostrando tranquilidade e bem estar. Os diálogos serão usados pontualmente e de forma a clarificar a(s) ação(ões).
O cinema de animação, como mais nenhum outro, permite-nos esta extraordinária destreza do gesto/som/ritmo, da evocação da memória à sua transformação em efabulação, mil vezes repetida.
Imagens e sons avançam sobre nós, derramam-se e depois extinguem-se, deixando um lastro.